A partir da concepção da poética de Aristóteles – capaz de revelar como o inesperado ocorre, como o infortúnio advém, como o saber pode brotar da ignorância, gozando de um surplus de racionalidade capaz de ordenar o caótico real – Rancière analisa o conjunto das transformações que, a partir do século XIX, trilham caminho no domínio da literatura e prolongam esta matriz no domínio das ciências sociais. Percorrem-se assim as mutações da ficção moderna e da teoria da narração, através de autores como Balzac, Poe, Stendhal, Maupassant, Rilke, Conrad, Sebald, Flaubert, Faulkner, João Guimarães Rosa, mas também Karl Marx – O Capital – e Eric Auerbach. Se as ciências sociais se aplicam a explorar, nos mais diversos domínios da realidade humana, encadeamentos causais próprios da mimésis, já o romance dedica-se a perscrutar caprichosos ritmos do quotidiano e existências anónimas. Através da pequena narrativa, do conto, de novas maneiras de contar e de narrar os acontecimentos, emerge uma outra concepção política, dos personagens e da sociedade. Desenha-se a oposição entre o discurso que incorpora a ideia de povo, e o subjuga, e o micro-discurso onde o povo surge desincorporado, emancipado nos seus personagens, em ruptura com a partilha hierárquica dos tempos de produção e de criação. Ao longo destes ensaios sobre literatura é o pensamento estético e político de Rancière que se torna mais preciso.
Jacques Rancière (n.1940), filósofo, é professor emérito da Universidade de Paris VIII, onde lecionou estética e política. Entre as suas obras destacam-se O Mestre Ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual (1987, tr. pt. 2010), La Mésentente. Politique et philosophie (1995), Estética e Política. A partilha do sensível (2000; tr. pt. 2010), em que opera o entrelaçamento entre a expectatica estética e a filosofia política. É ainda autor de O Espectador Emancipado (2008; tr. pt. 2010), O Destino das Imagens (2003; tr. pt. 2011), A Fábula Cinematográfica (2001; tr. pt. 2011) e de Nas Margens do Político (1998; KKYM, 2014) onde apresenta as suas incisivas “Dez teses sobre a política”.