Miguel Martins
“Só queria um sítio onde estar sozinho, a inventar
o meu passado: um tipo que frequenta feiras,
que se compraz com luzes coloridas e vozearias,
uma longa e sincera correspondência amorosa,
a magreza fleumática de quem não tem ânsias
a alimentar. Queria viver quase sempre de pé,
devolver ao rio a colheita do camaroeiro, moer
café à mão todos os dias. Queria que a solidão
que sou não embatesse em nenhuma parede,
que me ligassem para o telefone de discos
para pedir conselhos sobre o petromax,
que a conversa fosse breve e me enchesse do orgulho
que o poema não alcança. Queria que vissem
o meu desencanto como ele é: uma doçura
radical. Uma batalha perdida na memória. Nada
que vos diga respeito; nada, nada que vos diga respeito.
A não ser pela margem do sangue pela voz partilhada
das montanhas que nos enchem de espantos.
E de medos.”
(p.22)