Foi preciso que chegasse o recolhimento a que a pandemia nos forçou para que a minha relação com a moda se passasse a organizar numa nova modalidade, mais distanciada e mais centrada nos textos e nos arquivos.
Em dez anos a cidade mudou. Nas ruas, no metro, nas escolas ou nas discotecas cruzamo-nos com pessoas que são diferentes. Para sermos mais precisos, cruzamo-nos com pessoas que usaram a liberdade que as cidades sempre concedem para produzirem corpos e imagens diversificados. São histórias de amor próprio. Tal como são de amor as histórias que os criadores portugueses viveram durante os dez anos de produção da ModaLisboa. Por vezes essas histórias cruzaram-se. As colecções dos criadores propuseram regras de composição possíveis, programas que foram utilizados para compor e repor as imagens de nós próprios.
Escrevi este pequeno texto, em 2001, para integrar a exposição comemorativa dos 10 anos da ModaLisboa, que nesse ano decorria sob o leitmotiv «Pashion». Desde a década de 1990 que a moda, o vestir, as cidades e os processos de criação das identidades me interessaram, e, por isso, ao longo dos anos, sempre que foi oportuno, escrevi sobre o assunto. Em 2017, decidi iniciar uma abordagem mais etnográfica e comecei uma pesquisa de terreno no atelier do designer Filipe Faísca. Já num quadro de pesquisa académica, em 2019, organizei, em parceria com Solange Riva Mezabarba, um dossier intitulado «Moda: cultura material, modos de vestir e de se apresentar», publicado na revista Cadernos de Arte e Antropologia. A ideia de escrever este livro surgiu-me no fim desse trabalho conjunto, mas foi preciso que chegasse o recolhimento a que a pandemia nos forçou para que a minha relação com a moda se passasse a organizar numa nova modalidade, mais distanciada e mais centrada nos textos e nos arquivos.
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Num primeiro momento, este livro trata de quatro questões que foram identificadas logo nos primeiros textos escritos sobre a moda: o tempo enquanto contemporaneidade; a construção sistemática do novo; a oposição entre costume e moda; e a articulação entre imitação e distinção. De seguida, faz um parêntese para apresentar a noção antropológica de vestir, que, por ser construída a partir de uma perspectiva universal, liberta os estudos de moda de concepções demasiado ocidentalistas. Segue com uma apresentação de grandes temáticas — os percursos sociais das coisas, os seus trânsitos culturais, os sentidos das roupas, os corpos e os adornos, as identidades e o luxo. O livro termina com os impactos de algumas lutas cívicas e, no último ano, da pandemia nas dinâmicas da moda. [Filomena Silvano]