Ursula K. Guin
A ficção como cesta: uma teoria e outros textos é uma colecção de quatro ensaios de Ursula K. Le Guin, apresentados por ordem cronológica, que tal como nos diz a autora na nota introdutória de Dancing at the Edge of the World (onde encontramos três dos quatro textos agora traduzidos para português), pode «parecer um arranjo simplista, mas oferece uma biografia mental, um registo de respostas a climas éticos e políticos, ao efeito transformador de certas ideias literárias e às mudanças que ocorrem numa mente». Socorremo-nos mais uma vez dos argumentos de Le Guin e do seu «Guia Ursulino», criado pela autora, para catalogar os seus próprios textos: estes ensaios intersectam pressupostos da literatura com o feminismo a partir de uma noção mais ampla de responsabilidade social. Inspirados por Le Guin e desafiando os limites do plano literário, colocámos estes quatro ensaios em diálogo franco e permanente com os desenhos de Dayana Lucas.
«A FICÇÃO COMO CESTA: UMA TEORIA» (1986) coloca-nos perante uma questão primordial: que História e estórias contaríamos se, em vez do osso, que depois é machado, que depois é espada, que depois é uma pistola, um canhão, uma metralhadora, que depois é uma bomba, considerássemos os objectos que contêm outras coisas a invenção mais importante da humanidade? A partir desta hipótese, Le Guin desenha uma teoria da ficção e apresenta um método narrativo que não vê as estórias como lineares – o modelo progressista do tecno-herói, que constrói as estórias como flechas em direcção a um alvo –, mas as reconhece em toda a sua complexidade. Nelas entram uma panóplia de ideias, de coisas, por vezes difíceis de organizar, tal como em qualquer saco ou contentor, e onde cada um de nós poderá procurar e encontrar sempre coisas diferentes.
Desde o Livro do Genesis que as mulheres são apresentadas como estando mais próximas da Natureza. Ursula K. Le Guin, no ensaio «MULHERES/LUGAR SELVAGEM» (1986), transforma esta suposta proximidade numa homologia heurística, enquanto circunscreve e dinamita as limitações inerentes aos discursos normativos. Dar voz aos silenciados, fazer do outro familiar, imaginar plantas e pássaros e rochedos como iguais, trazer os homens de novo para esse lugar selvagem são alguns dos honestos e desestabilizadores argumentos deste ensaio.
Le Guin diz-nos: «o problema com a imprensa é que nunca muda de ideias». «O GÉNERO É NECESSÁRIO? REDUX» (1976/1987) é um ensaio auto-crítico que questiona esta determinação. Ao considerar que toda a escrita e a sua consequente interpretação são um processo e não um ponto fixo, Le Guin revê, em simultâneo, The Left Hand of Darkness (um dos seus mais aclamados romances, onde constrói um mundo sem guerra, sem exploração e sem identidades definidas por noções de género) – na versão «Is gender necessary?», escrita em 1976 –, e a sua própria revisão crítica – na versão Redux, de 1987. As «mentes que não mudam são como amêijoas que não abrem», diz-nos Le Guin na nota introdutória. Ao ler o ensaio, assistimos a um dos exercícios mais corajosos de desmistificação. Afinal, o lugar do autor não é um posto fixo, uma condição inabalável. É, pelo contrário, um lugar de confronto que deve começar precisamente por se confrontar consigo mesmo.
«APRESENTO-ME» (1992) é um ensaio desafiador e sarcástico que examina estereótipos de género e de identidade. Originalmente escrito como uma performance, em 1992, o texto explora o que significa ser mulher (e por extensão, homem). Nele, a autora identifica-se como homem, um «homem de segunda», que chegou tarde à possibilidade de ser mulher, porque a mulher, diz-nos, foi uma invenção recente e tardia. Confessional, intenso em jogos de palavras e metáforas, e expondo preconceitos que nos tornam meras vítimas de convenções, Le Guin sublinha as incoerências e querelas entre identidade e reconhecimento social, perfeição física e envelhecimento, com tal sagacidade e simplicidade que, no final, é difícil não rir com o absurdo do estado das coisas.